Redução do estigma pela reabilitação psicossocial e inclusão das pessoas com doenças mentais*

Manuel Viegas Abreu **

São duas as ideias principais que pretendemos propor para reflexão e debate.

  1. Um primeiro passo para reduzir o estigma associado às doenças mentais consiste em conhecer melhor a natureza multifactorial do estigma.
  2. A estratégia mais adequada de combate ao estigma e à exclusão social que dele deriva passa necessariamente pela criação e difusão de estruturas e serviços de reabilitação psicossocial e inclusão profissional.

1. A natureza multifactorial do estigma

Enquanto "marca" desvalorizadora ligada a uma pessoa, a uma situação, a um grupo ou a uma instituição, o estigma é um fenómeno de natureza complexa que importa conhecer melhor para melhor o poder combater. Conhecendo melhor as principais componentes de que o estigma é feito, as acções que procuram alcançar a sua redução podem organizar-se de forma mais fundamentada, consistente e sistemática. O estigma associado às doenças mentais tem raízes históricas e culturais muito profundas e complexas e é, ainda hoje, responsável por atitudes e processos de marginalização e de exclusão social que inibem a concretização de respostas sociais adequadas e dificultam os esforços de reabilitação e ­­­­integração comunitária. A marginalização, a desvalorização e exclusão social que atinge as pessoas com doenças mentais decorrem de "dificuldades de compreensão", de "preconceitos", "vergonhas" e "silêncios", proveniente muitas vezes das próprias pessoas doentes e das respectivas famílias. O estigma cristaliza-se numa espécie de "pacto de silêncio" em torno da realidade dramática dos doentes mentais e das suas famílias, que importa conhecer nos seus factores constituintes para o poder combater de forma eficaz.

Um factor psicológico básico: o medo
No estigma podemos identificar factores psicológicos, sociais, culturais e religiosos. Um dos factores psicológicos em que o estigma tem uma das suas raízes mais profundas é o medo: o medo de tudo o que aparece como estranho, desconhecido, inexplicado. Ao longo de séculos, os esforços para compreender e explicar as causas das doenças mentais têm conduzido a resultados muito frágeis. E ainda hoje as causas, factores e condições de eclosão das doenças mentais permanecem pouco conhecidas e, sobretudo, pouco difundidas socialmente. Sem informação suficiente, as pessoas receiam os seus semelhantes que apresentam sintomas característicos das doenças mentais O seu comportamento estranho suscita estranheza nos outros, a sua perturbação e ansiedade geram perturbação e ansiedade, as suas emoções de medo induzem medo. E o medo leva ao afastamento e à exclusão. Como combater o medo? Organizando e difundindo, de forma sistemática, informação actualizada, a começar pelos doentes e suas famílias, e alargando-a a toda a comunidade.

Os estereótipos ou as "ideias feitas", exemplos de factores sociais
De entre diversos factores sociais do estigma, podemos assinalar os estereótipos sociais ou as "ideias feitas" que são aceites como " verdades" pela grande maioria das pessoas, de forma implícita, sem análise crítica ou avaliação objectiva que os fundamente. Exemplo é o preconceito da violência acrescida e do perigo de perturbação da ordem pública por parte dos doentes mentais. A informação e a análise crítica das condições geradoras de violência constituem antídotos eficazes contra o estigma.

A componente cultural do estigma: a doença mental como "negação" de valores
O estigma das doenças mentais tem também uma forte componente cultural, na medida em que a doença mental é vista como um desvalor absoluto. A pessoa com doença mental é vista como incapaz de ser produtiva, não só do ponto de vista económico, mas também do ponto de vista cultural. Pensa-se que a doença mental incapacita para o trabalho e incapacita também para a criação cultural. A doença mental não acrescenta nenhum valor positivo à sociedade em qualquer das categorias fundamentais dos valores culturais do Bem, do Belo, do Verdadeiro, do Justo. Como combater esta avaliação desvalorizadora das doenças mentais? Promovendo o reconhecimento e a valorização das capacidades e potencialidades criativas das pessoas com doença mental em diversos sectores das ciências e das artes.

A componente religiosa do estigma: a "possessão pelos maus espíritos"
O estigma comporta também factores que podem ser considerados de natureza religiosa. Ao longo de séculos as pessoas com doenças mentais foram consideradas como "possessas de demónios", possuídas por "maus espíritos" cuja influência nefasta era preciso destruir para cura do corpo e alívio da alma. Numa perspectiva algo diferente, embora próxima, a doença mental é ainda vista e sentida como um "castigo divino" por alguma falta de que os pais das pessoas doentes se culpabilizam e de que dificilmente se podem redimir. Estas concepções sobre a origem "sobrenatural" da doença mental, potencialmente reforçadoras de outros factores do estigma, parecem estar actualmente em declínio, embora persistam "reminiscências" culturais que levam tempo a desaparecer. Como poderão estas concepções ser superadas? Como poderão ser substituídas por um visão mais próxima do "espírito das bem-aventuranças" inspirador de uma prática de misericórdia e de esperança ? S. João de Deus deu o exemplo ao ver em cada pessoa doente não o alienado estranho, imprevisto e perigoso, a ser submetido a castigos e maus tratos, mas o irmão próximo, que precisa de ser acolhido e apoiado. O exemplo de S. João de Deus tem de ser posto em prática por todos os cristãos. O apelo que Bento XVI lançou no Dia Mundial do Doente, na mensagem de 11 de Fevereiro de 2006, não pode ficar esquecido pela Igreja. Cumpre à Pastoral da Saúde Mental propor os caminhos mais eficazes para expandir a prática de proximidade, de acolhimento e inclusão social que caracterizou o carisma de S. João de Deus, que continua nas duas Ordens que ele inspirou.

2. A recuperação e a inclusão social dos doentes mentais são possíveis. Exigem estruturas e serviços de integração na comunidade cuja criação constitui o maior desafio cultural do nosso tempo
Todos sabemos que o estigma conduz ao afastamento, à marginalização e à exclusão. Assim sendo, a estratégia mais adequada de combate ao estigma e à exclusão social passa necessariamente pelo apoio às famílias e pela criação e desenvolvimento de estruturas e serviços de reabilitação e de integração na comunidade conducentes à inclusão social plena, tarefas que, até agora, têm sido difíceis de concretizar, mas cujo adiamento é eticamente insustentável.

O indispensável apoio às famílias
As famílias constituem a estrutura social de suporte natural das pessoas doentes e o primeiro factor da sua integração comunitária. Todavia, para que as famílias possam desempenhar com eficácia a sua missão, precisam elas próprias de preparação adequada , de apoios diversificados, contínuos e eficazes, por parte das Autoridades da Saúde, do Trabalho e da Solidariedade Social.

Entre os Hospitais e as Famílias: do vazio actual à integração na comunidade
A recuperação e a integração comunitária requerem estruturas e serviços intermédios entre os Hospitais e as Famílias, designadamente: unidades residenciais assistidas, centros de trabalho apoiado, equipas móveis de cuidados continuados.
Será possível a recuperação das pessoas com doença mental?
As pessoas com doença mental têm direito, como todos os doentes, a cuidados de saúde de alta qualidade, adequados à sua reabilitação, ao desenvolvimento possível das suas potencialidades criadoras e produtivas e à sua inclusão social plena. Se forem criadas as condições de estruturas e serviços de cuidados e apoios adequados a esse efeito, a resposta à pergunta formulada não pode deixar de ser positiva. A concretização dessas condições constitui o maior desafio cultural do nosso tempo.

As tarefas de uma mudança cultural: uma nova concepção e uma nova prática. Um apelo especial aos órgãos de comunicação social.
O estigma que envolve as doenças mentais reflecte-se na marginalização do próprio sector da saúde mental no interior do sistema nacional de saúde, do qual continua a ser o "parente pobre" por falta de investimentos adequados às necessidades em infra-estruturas, na preparação de recursos humanos especializados e na investigação fundamental e aplicada.
Importa, por conseguinte, suscitar um movimento consistente de combate ao "estigma", promovendo a informação objectiva sobre a realidade das doenças mentais, sua origem, natureza, evolução e possibilidades de recuperação, de forma a desfazer preconceitos, concepções erróneas e medos sociais injustificados.
Trata-se de contribuir para uma mudança cultural que envolve necessariamente muitos protagonistas de múltiplos sectores sociais. Os órgãos de comunicação social podem desempenhar um papel decisivo neste processo, abrindo as suas portas à informação esclarecida sobre a natureza das doenças mentais, sobre as potencialidades de reabilitação dos doentes e sobre as necessárias mudanças socio-culturais indispensáveis à sua valorização e inclusão social.

* Este texto reproduz com ligeiras alterações formais a comunicação apresentada no 2º Congresso de Pastoral da Saúde – Ao serviço da Pessoa: Curar e Cuidar, que se realizou em Fátima, de 1 a 3 de Fevereiro de 2007.

** Professor Aposentado da Universidade de Coimbra, Investigador do Instituto de Psicologia Cognitiva, Desenvolvimento Vocacional e Social (FCT)